A ciência – palavra inicialmente caracterizada como a ambição pelo conhecimento e pela apreensão de uma realidade oculta, misteriosa e não compreendida “racionalmente” – foi, de forma gradual, capturada e ressignificada, hoje estando a serviço da concepção que a considera tão somente aquilo que se presta a desvendar as leis dos fenômenos, valendo-se do método científico e de princípios gerais para investigar a realidade. Ou seja, a visão de mundo, estritamente positivista, ainda se faz dogma. Porém, como enfatizou o filósofo Bachelard, ao deparar-se com teorias modernas, a evolução do conhecimento é descontínua e ocorre por oposição aos sistemas anteriores, visando a ultrapassar os obstáculos epistemológicos neles arraigados. Essa teorização, denominada “corte epistemológico”, dá início ao reconhecimento do esgotamento e limitação de qualquer cosmovisão, pois, independentemente do arcabouço intelectual e referencial teórico adotado, todo observador é limitado e, como expôs Bachelard, “face à realidade, o que julgamos saber claramente ofusca o que deveríamos saber”. Dessa forma, nosso próprio conhecimento impossibilita-nos de tornarmos plenamente cognoscível e apreensível toda a realidade.
Seria o niilismo ortodoxo a salvaguarda para a verdadeira ciência? Apesar de muitas opiniões afirmativas a respeito, o próprio absolutismo passional niilista é passível de tornar-se obsoleto. Talvez a maior contradição em que incorre a ciência atual é, em seu afã para esgotar a angústia de vivermos cercados por contingências imprevistas, querer absolutizar, ditatorialmente, suas verdades generalizadoras como verdades totais e não como apenas uma amostra de formas singulares, dentro das outras infinitas formas possíveis de se compreender a realidade imediata.
O próprio fato fundamental de o que hoje é amplamente reconhecido como sendo a “ciência” amparar-se em princípios generalizáveis denota uma insuficiência para a compreensão da realidade, principalmente se o “objeto” em questão tratar-se de um fenômeno biológico, seja ele animal humano, seja animal não-humano, tendo em vista o incomensurável universo de singularidades, onde cada organismo é um único expoente existencial.
O que urge não são novos manifestos iconoclastas, mas, ao contrário, manifestações que se pautem por proposições verdadeiramente conciliatórias as quais revisem não o “o que” é feito, mas o “como” o é. Assim sendo, todos os aspectos e pontos de vista poderiam passar a formar nexos alternativos, estabelecidos em níveis de relação com graus diferenciados de concordância, e não mais nos valermos da pura oposição binária de forças. Isso comporia a teoria do denominado “rizoma”, idealizado por Deleuze e Guattari, uma analogia de contraponto à estrutura da raiz, a qual, mesmo dispondo ao seu entorno de variadas ramificações, não é atingida uma verdadeira multiplicidade, pois a conformação radicial pressupõe uma unidade metodicamente distribuída com início e fim, uma lógica dicotômica e, portanto, fascista, porquanto constrange as infinitas possibilidades somente em singelas binariedades de ser e não ser; de bom e mal; de certo e errado; de dominadores e dominados; de normais e loucos. A partir dessa lógica limitada, por não compreender a qualidade dual, múltipla e complementar da realidade, a pretensa verdade - quando muito – é disposta em polos antagônicos. Entretanto, essa disposição desconsidera todo o aspecto dimensional e paradoxal do plano de estudo que, há muito, se sabe não ser cartesiano.
Imediatamente ao estabelecermos vínculos, somos quase que como impelidos a engajarmo-nos a filiações e a partidarismos preestabelecidos e predeterminados. Assim é quando aderimos a certas instituições, sejam elas físicas, sejam ideológicas. Contudo, não deveríamos nos despir de nossa singularidade com a finalidade de melhor interpolarmo-nos a um paradigma, pois cada realidade é um novo paradigma em potencial. “Paradigmar” não deveria ser um verbo restrito a uma terceira pessoa, precisamos reapropriarmo-nos dele e expressarmos a realidade – da qual também somos elementos constituintes - de forma mais singular e fidedigna possível; precisamos redescobrir a forma flexionada e íntima do Eu, tão próximo, mas, ao mesmo tempo, tão distante em tempos de pretensões ingênuas de neutralidade, imparcialidade e objetividade.
Uma forma de contribuir-se para a renovação desse quadro é o investimento individual em novas práxis, as quais não se conformem em, simploriamente, reproduzir a lógica e racionalidade vigentes. A partir do momento em que nos entregamos passiva e apaixonadamente a qualquer verdade que seja, - inclusive esta - estamos desfazendo-nos um pouco mais daquilo que somos. E somos mais do que mente e do que corpo e do que ambos; somos o eterno devir de algo que não se sabe e nunca se saberá, pois os limítrofes do saber são demasiadamente estreitos para serem constritores da singularidade de cada fenômeno existencial que somos.