domingo, 31 de outubro de 2010

José Serra e os Partidáriios do Antismo


O pior que pode ocorrer para um curioso é tornar-se preconceituoso. Preconceito e conhecimento são antagonistas declarados. Aqueles que querem ser mais do que apenas um em meio à massa, precisam infiltrar-se repetidamente no desconhecido, desbravar o inusitado e jamais contentar-se com o evidente. Na realidade, a curiosidade não deveria ser tida como uma vaidade ou como um adorno a ser ostentado, mas como uma característica inextricável do ser humano.

Nesses tempos de políticas e politicagens afins, muitas vezes deparei-me proposital ou acidentalmente com eleitores que apoiavam declarada e orgulhosamente o postulante à presidência José Serra. Como recomenda a cartilha dos bons costumes das sociedades democráticas, sempre procurei estabelecer um diálogo aberto e reflexivo que contribuísse, mutuamente, para a consolidação de saberes corretos ou desmistificação de mitos que, porventura, passaram despercebidos. Incrivelmente, nenhuma dessas discussões vingou. De todas, saí com a impressão de que minhas convicções tornaram-se mais convictas, bem como a de meus interlocutores, supostamente, tucanos. Por algum motivo, nunca me conformei com o ditado popular que afirma o fato de não se dever discutir religião, política e futebol. Sempre achei que, tanto o futebol como a religião não podiam ser categorizados no mesmo quadro que a política. Enquanto, tanto a escolha por uma religião, como por um time de futebol - no caso do Brasil - são, em muito, escolhas influenciadas por uma paixão transmitida de pai para filho, de grupo para sujeito, a política, bem pelo contrário, não deveria se vincular a emoções partidárias infundadas, mas a uma crítica análise contextual. Sem dúvida, em dias nos quais a mídia é a janela da realidade, os efeitos sensórios das imagens, dos discursos e do carisma tornaram-se preponderantes. Entretanto, como pode alguém defender uma posição política apaixonadamente com o mesmo furor que defende seu time na final do campeonato, porém com a mediocridade crítica de um recém nascido em seu batizado? Se concordarmos que política não deve ser discutida, concordamos que uma posição partidária não é fruto de uma reflexão racional. Nesse caso, sim, a política não deveria ser discutida por uma simples razão: por não ser mais política. Sendo assim, alguém que não discute política, deveria posicionar-se tal qual quem não discute futebol: alheio, sem prós, nem contras. Quem não discute futebol não nega um time ou o outro, mas o fenômeno futebol como um todo.

Que os jovens estão descrentes do processo democrático, é fato. E não há razões para culpá-los como os responsáveis exclusivos. O contexto político, principalmente no Brasil, favorece esse posicionamento niilista. A juventude das classes média e alta nasceu em um país com uma democracia aparentemente consolidada, com direitos constitucionais assegurados, liberdade aparente e um crescente conforto sócio-econômico. Ou seja, por mais que falhas políticas ocorram, elas parecem não serem passíveis de ser modificadas, e mesmo não sendo modificadas, “melhorismos” individuais sempre ocorrem como que por acaso: universidades federais, carros, viagens e estabilidade. Já a juventude das classes menos favorecidas o que poderia fazer se reconhecem os jovens da alta classe, mesmo providos com estudo, dignidade e conhecimento não conseguindo mudanças? Porém, a ideia da descrença está ficando para trás, os jovens não estão mais negando o processo democrático (o que seria uma posição aceitável, já que negar a democracia também se constitui em movimento político), mas eles estão tornando-se reprodutores alienados de crenças sociais aberrantes. Dentre elas destaca-se a ideologia, não mais neo-liberal, de direita, privatizante ou outra afim, mas a do que eu chamo de “antismo”. Exemplifico o antismo como sendo um movimento alienado encabeçado por jovens da classe média e alta que, reproduzindo uma emoção estereotipada adquirida e consolidada a partir da convivência, inicialmente familiar e, posteriormente, grupal de pares igualmente alienados. O que em outrora era uma discussão inteligente e válida entre projetos antagônicos: direita e esquerda. Hoje se tornou nada mais do que um fantochismo. O que antes seria discutido em termos de “Estado forte/Estado mínimo”, “terceirização de empregos/ampliação da máquina estatal”, “mercado externo/mercado interno”, “fortalecimento do terceiro setor/industrialização” e etc, nesses tempos, é restrito a “é feio/feia”, “sabe se expressar/não sabe se expressar”, “parece convincente/não parece convincente”. Ou seja, o mais importante cargo do poder executivo do Brasil poderia ser melhor escolhido por estilistas ou diretores de Hollywood, afinal imagem, aparência e emoção é o que passou a contar, projetos políticos que nada.

O máximo do absurdo foi ouvir de jovens descontraídos às custas de suas brisas e vapores etílicos relatos convictos como o de terem votado em Marina Silva e até Plínio de Arruda Sampaio no primeiro turno, mas que, no segundo, seu voto seria para Serra. Esse contexto nonsense de, em menos de 30 dias, alguém passar seu voto do centro ou da esquerda para a direita, me pareceu uma oportunidade ímpar de entendimento de uma realidade, até então, ininteligível. Porém, a constatação foi uma só: o maior dos pecados, a generalização, me apanhou. Ao conversar com aproximadamente 15 jovens que declararam votar convictamente em Serra, constatei que nenhum possuía um argumento plausível sequer. Esse episódio, para mim, marcou o nascimento do novo movimento político [político?] Antismo. Esse movimento contempla tanto aqueles que votam na direita por se colocarem manipulada e ingenuamente “anti” o PT, bem como aqueles que votam na direita sem nem ao menos pensar o porquê, nesse caso o Antismo perde a conotação de contrariedade e oposição, reformulando-se no movimento que amistosamente abarca todas as antas que andam por aí, sem senso crítico, sem percepção da realidade, sem nada que esteja além do hedonismo vazio dos rituais e ficções sociais.

Sociologicamente estaria cometendo um pecado ao inferir que minha insignificante amostra é representativa para ser generalizada a um contexto mais amplo, porém nessas eleições cansei de procurar alguém da direita, um direitista declarado que esteja fora do jogo político. Quero um cidadão, um civil de direita que possa me dizer, me explicar, me dar uma razão, uma apenas: por que votar no Serra? Suplico, apenas para que a explicação seja mais ampla do que críticas comuns a programas sociais, teoricamente, ineficientes, à suposta corrupção generalizada e, por favor, longe, bem longe do “odeio o PT”, “quem era a Dilma antes”, “Dilma é nome de vó”, “Dilma era assassina/ ladra e todos os demais derivados da boataria infantil da direita”, “Dilma é produto do Lula”, “O PT virou de direita [essa é incrível! O PT virou de direita, portanto voto no PSDB]”, “O PT se aliou a Collor, Sarney e cia”.

Esse post é um pedido de um curioso com medo de tornar-se preconceituoso. Quero um partidário da direita que me prove - e não me comova - que não são só as antas que votam no Serra.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O Que Queres de Mim Estás em Ti


De fato, viver, simplesmente, é o maior sentido que poderíamos encontrar em viver. Porém, nenhuma experiência ou ação dá-se sem uma motivação, pulsão, impulso, desejo, ou outro combustível qualquer. Alguns poderiam, até mesmo, chamar de paixão. Enfim, o homem desapaixonado, sem desejo, nada mais é do que um corpo, simplesmente carne em movimento. O que anima, dá vida, vitalidade e sentido à existência é a sensação de plenitude e de realidade se manifestando desde as organelas celulares mais primitivas até os poros do rosto. E uma das formas de se sentir presente e vivo é através da potencialidade de autorrealização. Essa capacidade humana de se auto motivar talvez seja uma das capacidades psíquicas mais incríveis da humanidade, pois dela dependem muitos outros atributos igualmente admiráveis. Ter a capacidade de se autorrealizar é poder sentir-se completo, satisfeito e feliz através das próprias ações e atitudes. Isso, claro, não exclui o papel fundamental das relações. Relação não só é o que funda o homem, como também é o que lhe dá o ambiente propício à autorealização. Porém, há de se ressaltar que ninguém é triste ou feliz por causa do outro, mas sim em função de. A grande diferença reside no fato de que muitos creem que o outro é quem deve ser o mote, a causa e a consequência do nosso desejo, do nosso prazer, da nossa felicidade e da nossa autorrealização. Entretanto, o outro, sim, é fundamental, mas não o fundamento. O fundamento está em nossa capacidade analítica de não perceber de forma simplória o universo, acreditando que o foco da realização são cada um dos dois indivíduos, separadamente. Não, o que deve ser foco da realidade relacional é o que une essas duas partes em uma só, em um mesmo universo. Sendo assim, o centro de atenção não deve ser dado apenas às peças isoladas, mas sim, também a tudo que compõe, reveste e dá sentido a elas, inclusive elas próprias e os efeitos que cada uma causa na outra e em si própria . É impossível separar causa e efeito, assim como é impossível analisar o outro sem analisar-se e deixar-se analisar. O outro só é outro porque existe um não-outro.
A atitude egoica de centrar-se somente em si, nos próprios desejos e na própria vontade limitam as capacidades transcendentes de ser mais do que se é. Quando se deixa fluir em meio a algo superior a si próprio, como é uma relação, e não se deixa mais guiar por sentimentos pequenos e puramente individuais, a autorrealização emerge como consequência imediata. Isso ocorre porque, enquanto optamos por preocuparmo-nos com aquilo que podemos fazer para o outro ser melhor e mais adequado para nós e para as nossas expectativas, deixamos de descobrir e inventar meios de sermos melhores para nós próprios. Disso decorre uma tripla frustração: frustramo-nos, em primeira instância, pela nossa incompetência em moldarmos, transformarmos e adulterarmos o outro segundo nossas próprias convicções. Essa derrota é um ataque voraz contra nosso narcisismo primordial, pois não aceitamos reconhecer que pessoas não mudam pessoas, mas que pessoas são mudadas por pessoas. Essa simples inversão de termos demonstra que no processo de viver a mudança e a transformação são inerentes à existência, porém não podem ser impostas através de vozes ativas e autoritárias, mas ocorrem através de uma relativa passividade que, com delicadeza, sutilmente coloca os sujeitos em comunhão; em um segundo nível, a frustração advém da nossa infelicidade e do vazio existencial que brotam de algum lugar dentro do peito. Mesmo estando acompanhados, sentimo-nos sozinhos, jogados na indescritível tragédia do existir. Essa frustração provém de toda a expectativa de gratificação que depositamos nos ombros do outro. Com essa ação abdicamos de nossa responsabilidade de guiarmos nossa vida, nosso destino, nossas desgraças e nossas conquistas. Ou seja, da mesma forma que acreditamos ser o outro o capaz e o responsável por nos fazer feliz, também lhe atribuímos o poder de fazer-nos tristes e vazios; no terceiro estágio, contemplamos a última frustração, aquela que surge em um momento no qual nos encontramos longe da possibilidade de refazer um destino, enfim, já consumado. Quando percebemos que nossas duas frustrações anteriores foram causadas quase que única e exclusivamente por nós mesmos, sentimo-nos culpados, arrependidos por não termos desistido e renovado nossas formas de agir, pensar e desejar nos primeiros passos desse caminho sombrio que ingenuamente escolhemos. Mesmo que o resultado do presente não pudesse ter sido totalmente diferente em função de ajustes no passado, com certeza sabemos que teríamos sido, ao menos, autorrealizados durante o percurso que nos trouxe até onde estamos. Portanto, haveríamos, senão mudado os rumos da história, pelo menos haveríamos mudado por onde a história rumou até aqui.
Viver é tão simples que precisamos criar jogos e complicações para que pareça, de fato, real. Temos medo de que aquilo que flui e não causa desconforto possa passar sem ser sentido, sem ser notado, sem ser vivido, como se fosse um sonho. Então, por medo de estarmos dormindo, encarregamo-nos constantemente de beliscarmo-nos pela pura necessidade de cessarmos a angústia de existir, em busca da leviana certeza de estarmos certos. Para seguirmos nesse caminho “certo”, inventamos problemas complexos almejando o êxtase volátil de poder resolvê-los, muito embora viver com intensidade é estar plena e constantemente realizado em saber realizar-se constantemente através de tudo aquilo que nos faz cada vez mais parecidos com o que somos.

domingo, 10 de outubro de 2010

Paradigmo, paradigmas, paradigma


A ciência – palavra inicialmente caracterizada como a ambição pelo conhecimento e pela apreensão de uma realidade oculta, misteriosa e não compreendida “racionalmente” – foi, de forma gradual, capturada e ressignificada, hoje estando a serviço da concepção que a considera tão somente aquilo que se presta a desvendar as leis dos fenômenos, valendo-se do método científico e de princípios gerais para investigar a realidade. Ou seja, a visão de mundo, estritamente positivista, ainda se faz dogma. Porém, como enfatizou o filósofo Bachelard, ao deparar-se com teorias modernas, a evolução do conhecimento é descontínua e ocorre por oposição aos sistemas anteriores, visando a ultrapassar os obstáculos epistemológicos neles arraigados. Essa teorização, denominada “corte epistemológico”, dá início ao reconhecimento do esgotamento e limitação de qualquer cosmovisão, pois, independentemente do arcabouço intelectual e referencial teórico adotado, todo observador é limitado e, como expôs Bachelard, “face à realidade, o que julgamos saber claramente ofusca o que deveríamos saber”. Dessa forma, nosso próprio conhecimento impossibilita-nos de tornarmos plenamente cognoscível e apreensível toda a realidade.

Seria o niilismo ortodoxo a salvaguarda para a verdadeira ciência? Apesar de muitas opiniões afirmativas a respeito, o próprio absolutismo passional niilista é passível de tornar-se obsoleto. Talvez a maior contradição em que incorre a ciência atual é, em seu afã para esgotar a angústia de vivermos cercados por contingências imprevistas, querer absolutizar, ditatorialmente, suas verdades generalizadoras como verdades totais e não como apenas uma amostra de formas singulares, dentro das outras infinitas formas possíveis de se compreender a realidade imediata.

O próprio fato fundamental de o que hoje é amplamente reconhecido como sendo a “ciência” amparar-se em princípios generalizáveis denota uma insuficiência para a compreensão da realidade, principalmente se o “objeto” em questão tratar-se de um fenômeno biológico, seja ele animal humano, seja animal não-humano, tendo em vista o incomensurável universo de singularidades, onde cada organismo é um único expoente existencial.

O que urge não são novos manifestos iconoclastas, mas, ao contrário, manifestações que se pautem por proposições verdadeiramente conciliatórias as quais revisem não o “o que” é feito, mas o “como” o é. Assim sendo, todos os aspectos e pontos de vista poderiam passar a formar nexos alternativos, estabelecidos em níveis de relação com graus diferenciados de concordância, e não mais nos valermos da pura oposição binária de forças. Isso comporia a teoria do denominado “rizoma”, idealizado por Deleuze e Guattari, uma analogia de contraponto à estrutura da raiz, a qual, mesmo dispondo ao seu entorno de variadas ramificações, não é atingida uma verdadeira multiplicidade, pois a conformação radicial pressupõe uma unidade metodicamente distribuída com início e fim, uma lógica dicotômica e, portanto, fascista, porquanto constrange as infinitas possibilidades somente em singelas binariedades de ser e não ser; de bom e mal; de certo e errado; de dominadores e dominados; de normais e loucos. A partir dessa lógica limitada, por não compreender a qualidade dual, múltipla e complementar da realidade, a pretensa verdade - quando muito – é disposta em polos antagônicos. Entretanto, essa disposição desconsidera todo o aspecto dimensional e paradoxal do plano de estudo que, há muito, se sabe não ser cartesiano.

Imediatamente ao estabelecermos vínculos, somos quase que como impelidos a engajarmo-nos a filiações e a partidarismos preestabelecidos e predeterminados. Assim é quando aderimos a certas instituições, sejam elas físicas, sejam ideológicas. Contudo, não deveríamos nos despir de nossa singularidade com a finalidade de melhor interpolarmo-nos a um paradigma, pois cada realidade é um novo paradigma em potencial. “Paradigmar” não deveria ser um verbo restrito a uma terceira pessoa, precisamos reapropriarmo-nos dele e expressarmos a realidade – da qual também somos elementos constituintes - de forma mais singular e fidedigna possível; precisamos redescobrir a forma flexionada e íntima do Eu, tão próximo, mas, ao mesmo tempo, tão distante em tempos de pretensões ingênuas de neutralidade, imparcialidade e objetividade.

Uma forma de contribuir-se para a renovação desse quadro é o investimento individual em novas práxis, as quais não se conformem em, simploriamente, reproduzir a lógica e racionalidade vigentes. A partir do momento em que nos entregamos passiva e apaixonadamente a qualquer verdade que seja, - inclusive esta - estamos desfazendo-nos um pouco mais daquilo que somos. E somos mais do que mente e do que corpo e do que ambos; somos o eterno devir de algo que não se sabe e nunca se saberá, pois os limítrofes do saber são demasiadamente estreitos para serem constritores da singularidade de cada fenômeno existencial que somos.