A deriva é um exercício prático que tem como finalidade construir situações a partir da ação de deixar-se guiar pela psicogeografia. Esta, por sua vez, é a capacidade que os ambientes têm de produzir efeitos - conscientes ou não - nos afetos, nas emoções e nos comportamentos dos sujeitos. A deriva retoma o conceito de flâneur, descrito por Baudelaire como a pessoa que passeia pelas ruas e cantos desconhecidos da cidade sem compromisso, sem pressa, observando a tudo e a todos meticulosa e despretensiosamente, simplesmente flanando ao sabor do acaso. A ideia da deriva foi retomada com força pelos teóricos do urbanismo e arquitetura, principalmente por Guy Debord, importante filósofo, escritor, cineasta francês e fundador da Internacional Situacionista: movimento de vanguarda que propunha a apropriação dos espaços urbanos através da prática da deriva.
Entretanto, mais do que o aspecto cultural transcendente propiciado pela apropriação de territórios através da deriva, o ato de derivar colabora com a construção da subjetividade daqueles que derivam. A subjetividade humana pode ser pensada como uma fábrica de sentidos em constante transformação. Ou seja, a cada instante que estamos sendo o que somos, também estamos deixando de ser o que éramos e nos tornando uma nova forma de ser. Esse processo de constante mudança dá-se conforme nossas contingências, ou seja, conforme as relações que estabelecemos com os outros e com o meio no qual estamos inseridos. Dessa forma, nós seremos, invariavelmente, o resultado impreciso e instável da miscigenação dessas circunstâncias.
Muitas pessoas buscam restringir sua existência a espaços delimitados, situações estanques e pessoas específicas, na intenção voluntária ou involuntária de obter um poder de domínio sobre seu futuro. Nessa forma ascética de existir, há embutido um anseio por segurança, não uma segurança exclusivamente relacionada à integridade física, mas uma segurança em âmbito subjetivo, um anseio de preservarmo-nos inabalavelmente como somos, como conhecemos a nós mesmos. Tudo aquilo que é diferente ou pode produzir diferença em nós é assustador, quanto mais fechados em nós mesmos somos, mais pavor o Outro irá causar-nos. Sendo assim, a deriva surge como uma prática libertária, uma forma de revolução individual. O termo revolução vem bem a calhar, pois a principal característica da deriva é tornar as pessoas qualquer coisa que não seja o que eram. Esse poder revolucionário atribuído à deriva advém principalmente de um importante elemento indissociável a ela: o acaso. Enquanto em tempos antigos as tradições, os ritos e os rituais eram as formas pelas quais as gerações mantinham uma certa comunhão comunicativa e, por conseqüência, perpetuavam a cultura de forma rígida; nos dias de hoje, a rigidez histórica e cultural foi abalada a tal ponto que os sujeitos não encontram sua identidade em nenhum círculo de convívio específico, mas em todos, ao mesmo tempo. A cultura pós-moderna é transcultural, intersubjetiva e cada vez mais complexa. Então, se em outrora, devido a pouca flexibilidade cultural, os papéis eram clara e objetivamente definidos, dificultando significativamente o estabelecimento de uma subjetividade singular, contemporaneamente há o total avesso: uma permeabilidade total que, de forma semelhante também compromete a apropriação de uma subjetividade singular. Entretanto, atualmente, o próprio sistema que, devido à profusão de significados dificulta a incorporação de uma identidade, também cria brechas que permitem, através da deriva, por exemplo, os sujeitos serem transeuntes da própria existência, possibilitando que o acaso colabore na construção de um complexo existencial, deixando que a subjetividade transcenda os próprios limites da subjetividade.
O mais incrível presenciado por aqueles que têm o hábito de derivar é o aspecto de pertencimento e apropriação que brota quase que naturalmente. Aqueles que derivam podem perceber o espaço como uma extensão corpórea, um apêndice tão indissociável quanto qualquer outro membro físico. Essa apropriação dá-se no momento em que se deixa de ser espectador passivo e passa-se a ser autor, ou melhor, autor-ator de sua própria realidade. Como teorizaram muitos críticos contemporâneos, cada vez mais estamos inseridos em uma sociedade do espetáculo, a qual inverte as noções de público e privado, tornando cada vez mais os sujeitos prisioneiros de seus medos e desconhecimentos. A realidade cada vez mais mediada [midiada] faz com que a população das grandes cidades - principalmente - tenha cada vez menos informações acerca do que lhes diz respeito a partir da vivência, do empirismo e da contemplação, obtendo o conhecimento de suas “verdades” majoritariamente através de instrumentos que as distanciam daquilo que deveria ser o objeto primordial: o mundo. Essa alienação colabora para que aquilo que é desconhecido seja conhecido sobre a forma estática de “desconhecido”, portanto perigoso e passível de distanciamento. Esse distanciamento não somente nos afasta do mundo e da realidade imediata, como também afasta-nos de nós mesmos, afinal sem as relações com o mundo e com o Outro não concretizamos o desvelamento e a compreensão de nós mesmos. Na contramão desse aprisionamento constante, quando colocamo-nos a derivar, impelidos pelo desejo instigador, realizamos conexões de causa e efeito, início e fim que nos permitem conhecer o desconhecido e colocá-lo como um ente próximo. Há uma subversão dos sentidos: aquilo que causava medo, angústia e tensão, passa a ser um espaço de libertação e regozijo, afinal, quando absorvemos o Outro antropofagicamente, somos impregnados por uma interpretação singular daquele fenômeno o qual, por ser irrepetível, não pode ser descrito de outra forma que não como a expansão de nossa subjetividade. Absorver a realidade é alimentar nossa subjetividade, pois, por ela deixar de ser constantemente o que está sendo, constantemente permanece a ser o que é: uma entidade indissociável do que somos, em constante construção, em eterno vir-a-tornar-se, o que se pode chamar de devir existencial.
Apesar de a deriva dar-se no espaço das ruas, as transformações perceptivas vão para muito além da compreensão arquitetônica das cidades, elas também produzem diferenças significativas em nossa maneira de compreender aquele outro humano. Como os que derivam têm o espírito e a mente expostas à realidade, deixam-se absorver tudo aquilo que se possa agregar à subjetividade. A noção do Outro homem também é absorvida e podemos passar a perceber que aqueles que transitam ou transitaram, que estão ou estiveram em contato conosco são, apesar de serem o não-eu, tão importantes a nós quanto nós mesmos, pois são eles que também constroem nossa subjetividade. A maior contribuição da deriva à humanização das pessoas é seu potencial de expandir a subjetividade, torná-la cada vez mais maleável, elástica, flexível e capaz de abarcar fragmentos de outras realidades, mesmo que realidades incompreensíveis. Aqueles que derivam não estão em busca constante de conclusões, mas estão com conclusões constantes enquanto buscam derivas. Ou seja, a deriva não é um ato de construção ou solidificação, muito pelo contrário, derivar é desconstruir, implodir velhos conceitos, reformular, reorganizar e tornar-se algo fruto também do acaso, do esporádico, do imprevisível e, até mesmo, tornar-se fruto daquilo que não se sabe. Não raro, aqueles que derivam se põem a experimentar experiências registradas anteriormente como desagradáveis, simplesmente pelo fato de garantirem que estão transformando a realidade de uma forma não metódica ou previsível, desse modo transformam a realidade de uma forma não compreensível nem por eles próprios. Derivar é organizar a harmonia em meio ao caos. É pregar peças em si mesmo. É ser sujeito ativo da sua própria realidade.