segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Tic-Tac

Um desalento sedento de prazer

Um corpo cambaleante diante da defenestração

Quanta emoção

Viver a vida por um fio de autocomiseração

Observar os carros passar

Mas cansar de esperar aquele passar

Madrugada quase fria, calçada vazia

Relógios por toda parte insistem em desviar a arte do não ser

Quanto tempo para abastecer a vacuidade do anoitecer

Ler, ver, em alguns momentos até crer no não pensar

Mas sempre voltar àquele lugar onde não se pode estar

Desviar o rumo, mudar a rota colocar a vida à prova

Sentar na janela e ficar à espera do brilho de uma estrela que não brilha mais

Ser capaz de vasculhar mentes e cultivar sementes de sentimentos virtuais

Escrever uma dúvida, anotar uma esperança, provocar uma lembrança

Conversar sem falar, codificar para dificultar

A insanidade infantil daqueles que não conseguem envelhecer

esquecer

E só restar provocar um par de sorrisos para se entreter

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O Volátil Cheiro do Amar

O amor é volátil, assim como o cheiro se dispersa pelo ar, pelas escadas, salas e dormitórios. Quando sentimos nossas roupas, pelos e pele embebidos no cheiro da pessoa amada é como se a presença ausente já não fosse mais solidão, mas uma perpétua união de saudade. A imaterialidade contundente do cheiro é o par análogo perfeito do amor. Não precisamos ter a pessoa para senti-la; não precisamos tocar suas curvas e boca para sorvermos o prazer indizível da completude lacerada. E o mais importante, não podemos de toda verdade afirmar não estarmos em sua presença, pois o cheiro é a extensão concreta e palpável do corpo. Cada fragrância é uma impressão digital marcada na tez, que lava consigo mais do que o espírito memorável do ser amado, mas traz o corpo denso, único e capaz de pegar-nos pela mão e levar-nos a um passeio, a um jantar ou a um delírio idílico de um amor dionisíaco. Só quem ama sabe.
Ter em seu corpo o cheiro da pessoa amada é ter sobre seu corpo o corpo despido do seu amor. Sem roupas e sem máscaras, apenas, e mais do que tudo, em sua essência pura e imaculada. Essa presença volátil que domina sem prender faz-se onipresente, adentra as narinas e instala-se na alma, no âmago de um coração apaixonado que com sublime paixão sublima o amor, eleva o espírito, transcende o corpo e encontra o infinito no segredo desvendado do amar.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A Voz do Lixo



Em um dos parques mais representativos da cidade gaúcha, Porto Alegre, firmou pousada o morador de rua com nome complicado: André Boardman Malet, homem branco, queimado pelo sol, com cabelos rasos e grisalhos esparsos. Apesar do tipo físico magro e aparência maltratada devido aos anos de trabalho árduo como papeleiro, a voz mansa e os movimentos contidos transpareciam uma simpatia e irreverência cativantes. Quando o abordei para perguntar se ele importar-se-ia em conceder uma entrevista, André gentilmente guardou a revista “Isto É” que estava lendo, encontrada em um dia de trabalho, e, então, prontamente começamos a prosa.

Guerra – Quantos anos você tem?

André – Eu nasci em 71 né, então...

Depois das contas – e algumas dificuldades matemáticas tanto do entrevistador quanto do entrevistado – chegamos à conclusão de trinta e oito anos, um ano menos que André pensava. Após esse rejuvenescimento, ele animou-se a tomar um dedinho de sua “cachacinha”, companheira inseparável na solitária vida desprovida da possibilidade de sonhar.

André – Aqui a cachaça tu tomas mais porque a questão não é só descansar um pouquinho, mas é porque o corpo tá precisando mesmo. Daí chega a hora de dormir e tu dormes mesmo, curte aquele sono. Às vezes meus olhos enchem de água pensando na minha família, nos meus parentes que não são legais comigo. Mas daí eu tomo a cachaça, e vai passando o tempo, tu vais ficando meio zonzo, daí tu comes a comida, deita um pouco e descansa. Porque de “carinha” é brabo, sem tomar um trago, é brabo. Tu não consegues encarar a vida, não por uma derrota, porque eu não tenho culpa de vir da onde eu vim, mas porque é brabo mesmo.

Guerra – Você mora na rua?

André – Eu moro na rua. Quando minha mãe e eu viemos para cá, ela foi fazer uma faxina e arrumou um outro namorado, daí nasceu meu irmão. Minha família é muito rígida. Então a escorraçaram de casa e ela juntou-se com o pai do meu irmão, mas ele era muito ruim, batia nela, batia em nós. Ela não aguentava ver isso, então se matou. Depois que minha mãe se matou eu fui morar com a minha vó. Mas daí, um tempo depois, ela morreu e eu fui morar com meus tios que têm uma marmoraria. Eu trabalhava lá, mas eles me tratavam muito mal. Eu tinha que levantar às sete e trinta da manhã e trabalhava até às oito horas da noite quebrando pedra. Eu não ganhava nada, era horrível. Todos os outros caras que trabalham lá ganhavam duzentos e cinquenta reais por semana, com todos os direitos. Comigo era diferente, eu só ganhava alguma coisa quando sobrava troco do supermercado. Bah, era horrível, quebrei todos os meus dedos derrubando pedra em cima, agora eu prefiro trabalhar como papeleiro. Se eu quiser trabalhar lá eu posso, mas tem que ser de graça; tem trabalho, mas só se for de graça. E isso me dói o coração. A minha vida foi braba, foi terrível; por isso, desde que eu comecei a morar na rua, não senti impacto nenhum. Às vezes eu tenho vontade de comer um doce, eu paro na frente da confeitaria, escolho o doce e como. Esses dias eu até me ralei, me cobraram cinco reais e pouco por um potinho de doce, mas era uma coisa que eu tava com vontade de comer, eu tinha dinheiro, então fui lá e comprei. Antes eu ficava vendo de longe meus primos comerem. Eu me lembro no Natal todo mundo ganhando presente e eu não ganhando nada, isso corta o coração. Bah, se eu chegar lá e pedir um lugar pra dormir, eles dizem para eu ir me acertar com os cachorros. Mas nem por isso eu me tornei um ladrão, um bandido, sou um cara trabalhador.

Guerra – Você já foi para algum albergue?

André – Não, porque não tem onde deixar o carrinho. Se tivesse, com certeza eu iria. Já tentei ficar em pensão, mas lá tem roubo. Eles prometem que ninguém mexe no teu carrinho, mas de noite roubam tudo.

Guerra – Você consegue manter-se com a sua profissão?

André – Claro, eu consigo. O carrinho dá pouco, tu te ralas e dá muito pouco, mas se tu não gastares o dinheiro em outras coisas, sempre sobra um troquinho para guardar: três, quatro, cinco reais por dia, até dez, dependendo da viagem. Até porque tu tens que ter um dinheiro para gastar com graxa, com um reparo ou outro no carrinho.

Guerra – Como é no inverno?

André – Ah, o inverno é terrível. Se tu ganhares dez “pila” hoje, tem que comprar farinha e álcool para fazer bolinho. Porque é dois, três dias chovendo, e tu socado dentro do carrinho, só comendo bolinho. E aqui já não dá para ficar, tem ficar mais lá para dentro, perto do estaleiro, porque lá é um lugar mais retirado, aqui não dá. Tu não vais ficar o dia inteiro dentro do carrinho, a SMAM vem na hora, te enfia dentro do caminhão e te leva. E se eles deixarem, amanhã tem quinhentos. Então no inverno é brabo, molha uma roupa tem que colocar fora. Tênis então, às vezes tem que trabalhar com os pés descalços, dando com a ponta dos dedos nas pedras. Bah, deus o livre, no inverno é terrível.

Guerra – O que você pensa a respeito da polícia?

André – Eu gosto da polícia. Os brigadianos, podes ver, tu estás conversando comigo, eles passam aqui na volta e não vêm. Vieram uma vez pedir documentos, eu mostrei meus papéis, ele “radiou”, viu que estava tudo certo, e foi embora. Há muitos anos me pegaram fumando um baseado,foi só esse meu problema com a polícia, nunca mais. Tem policial corrupto, mas é a exceção. É que nem na minha profissão, quantos papeleiros ladrões têm por aí. Pra mim é bom a polícia por aí, podia até ter um pouco mais.

Guerra – Algumas pessoas reclamam da violência desnecessária da polícia, isso nunca ocorreu com você?

André – Tem uns guris que são meio abusados, da Guarda Municipal também. Um outro dia, o brigadiano chegou, conversou comigo dizendo que eu poderia ficar dentro do parque, mas que o carrinho deveria ficar na rua. Eu concordei e saí. Depois me disseram que onde eu estava os caras vendem drogas. Mas o guarda municipal disse: “oh se eu te pegar ali dentro, vou te botar pra correr”. Olha cara, ninguém chegou e disse que iria me dar um salário, um emprego, um lugar direitinho pra dormir. Se oferecessem, eu largava meu carrinho agora. Eu não estou aqui por opção, nem por esporte. Sou obrigado a estar aqui, não tenho outra opção. O que eu mais queria era poder chegar de noite em uma pecinha minha, me deitar, ter meu lençolzinho limpinho. Poder lavar a minha roupa. Poder ter meu serviço direitinho, cumprir a minha hora e ir para casa, fazer minha comida. Se eu tivesse uma oportunidade, claro que eu iria largar isso e não iria atrapalhar mais ninguém na rua.

Guerra – O que você pensa quando olha um carro importado na rua?

André – Ah, um carrão bonito é de um empresário, alguém que estudou desde pequeno, que teve condições de estudar. Ou é de um cara que teve um pouco mais de sorte, lutou bastante e conseguiu. Ou é de alguém que tem uma firmazinha e tirou crediário, porque se tu tens uma firma, tem um endereço, tem uma casa, eles te ajudam. Ou às vezes já vem de berço mesmo.

Guerra – E você acha justo isso? Alguém ter um carro que valha mais do que todo o dinheiro que você irá arrecadar durante a vida toda?

André – É, daí só se assumisse aquele governo em que seria todo mundo igual. Eu não sei qual é o governo, não sei se é aquele da foice, que tinha o martelinho, mas disseram “oh vota neles que se eles assumirem vai ser todo mundo igual, não vai ter aquele negócio de desigualdade”. Acho que se eles assumissem ajudariam um pouco a gente. Porque se esses caras que têm carrão de não sei quantos milhões dessem um pouquinho para ajudar, já resolvia. Mas daí teria que fiscalizar bem fiscalizado, porque esses negócios de cooperativa é o maior "assanho" de tráfico. Tem que fiscalizar para que o cara dê tanto pra ajudar fulano, ajudar beltrano e ajudar mesmo quem precisa. Fazer a casinha direitinha para os caras, mas pecinha pequena, não casarão, já que estão dando uma força. É uma casinha para o cara poder trabalhar, sete e meia da manhã, oito horas tem que sair, ir trabalhar, e poder voltar de novo. Em seis meses, um ano tem que aparecer o progresso, o cara tem que estudar, porque daí se verem que ele está estudando, está se interessando vão dizer: “continua ajudando ele”.

Guerra – O que você acha da política?

André – Vou ser bem sincero contigo, eu não entendo muito disso. Eu acho uma corrupção, uma pouca vergonha. Eu não me animei mais a votar. Tenho vergonha de dizer que sou brasileiro. Tu os coloca lá, e eles só pensam neles mesmos. Se eles ganhassem um pouquinho menos, já ajudavam mais o pessoal de rua, e diminuía os moradores de rua. Tu queres ver, esses dias eu me apavorei, com o salário de um mês de um deputado eu vivo um ano, acho que mais de um ano, porque eu vivo três, quatro dias com dez reais. Eu vivo, com certeza, mais de um ano; compro minha erva de chimarrão, e vivo mais de um ano, e vivo bem; pelo amor de deus, vivo bem mesmo. Acho que vou trabalhar a vida inteira e não vou conseguir ganhar o que eles ganham em um mês.

Guerra – Que sugestão você daria para mudar essa situação?

André – Se eles pegassem esses drogados que andam com sacos nas costas, com “alicatões” dentro para roubar carro, atrás de pedra para fumar e de coisa assim, se eles pegassem todos e fizessem uma triagem, porque eles têm mais cabeça que eu, então eles têm como saber quem quer mudança e quem não quer. Se o cara não quiser mudança, então pega o nome dele e registra, se a Brigada pegar ele roubando, leva para outro lugar, tira ele de circulação para não ficar atrapalhando quem está trabalhando. Aquele que quer mudança, se estiver interessando, se estiver ajudando lá dentro também, então ganha uma força. Eu sou um que aceitava a mudança na hora.

Guerra – Você sente-se como se a cidade não fosse sua? Como se você não pertencesse à cidade?

André – Têm muitos lugares que as pessoas te olham com cara de nojo. A sociedade tinha que mudar. A pessoa que lutou, que estudou, que está no patamar que está, que tem condições psicológicas de entender o que é um carrinho na rua tem que saber discernir um ladrão de um trabalhador. As pessoas tinham que saber “aquele ali tá trabalhando, então não vou chingar ele”. Tem um senhor que passa aqui com os cachorros dele, e os cachorros vêm pertinho de mim, abanam o rabinho e tudo, mas o senhor grita com eles, para eles saírem de perto de mim. Uma vez eu até tentei cumprimentar o senhor, mas ele nem bolas deu, olhou pro outro lado. Os cachorros são mais humanos, por isso que eles vêm aqui. E outra, querem fechar a redenção. Ninguém mais vai poder entrar, só os “burga”, só quem tem condições. Quando vês, estaciona um bom carro, o cara coloca uma rede e fica bem à vontade. Mas nós pobres, eles vão expurgando.

Guerra – Além daquele baseado, você já usou outras drogas mais pesadas?

André – Maconha eu já fumei umas quantas vezes, e já experimentei Crack uma vez, logo que saiu, mas não gostei, porque o cara fica meio estranho, ele olha diferente, parece que alguma coisa acusa na consciência, é uma droga desgraçada mesmo, não vale à pena, deus o livre. O que eu gosto é de tomar cerveja. Bah cara, uma “Skol” de latinha, geladinha. Olha, eu compro doze geladinhas. Os caras se apavoram, mas eu digo que se eu for comprar duas garrafas esquenta rápido, então eu vou lá um dia antes, pago metade adiantado, e peço paro o cara reservar para mim. Mas isso só no final de semana, porque nos dias de semana eu tomo cachaça, mas não é sempre, eu tomo de manhã um pouco e de tarde o resto. Eu não tomo direto, porque depois, conforme a idade, gasta as veias por dentro, daí não vale à pena.

Guerra – O que você pensa do papel dos universitários? Você acha que eles querem fazer algo para mudar, ou já estão acomodados à forma do sistema?

André – São o futuro do nosso país, cara. A gente não pode julgar eles pelos corruptos que estão lá em cima, vamos apostar. Claro que não vou dizer que de quatro, cinco não vai sair um que vai se juntar aos corruptos. Mas tem muita gurizada aí que está com vontade de mudar, de ver os problemas.

Guerra – Você acha que se o governo lhe desse apoio você poderia mostrar seu valor e contribuir para sociedade?

André – Acho que eu poderia me integrar para a sociedade, porque eu me considero um excluído, abaixo da sociedade. Se o governo me apoiasse em estudar e em ter um serviço, eu iria me integrar à sociedade. Porque assim eu estou dependendo do lixo da sociedade para sobreviver, da sobra deles. Se eu tivesse o apoio do governo, com certeza eu mudaria de vida. Bah, olha, o primeiro que chegasse com uma proposta de um lugar para eu dormir, para poder ter as minhas coisas, um serviço, estudo, aceito na mesma hora, não penso duas vezes.

Guerra – Você acha que a solução é educação ou polícia?

André – Não adianta só colocar polícia na rua a dar pau nos cara. O que adianta vir um brigadiano agora aqui e pegar meu carrinho e me botar pra correr? O governo não está dando chance de eu progredir. Se o cara está na rua e não tem um pensamento abençoado por deus, cai na vida do crime, das drogas. Fuma maconha e crack toda hora. Então, colocar polícia na rua até pode tirar eles, mas tem que dar uma chance para mim. Para apertar tem que dar uma chance para nós. Eu quero mudança, eu quero mudar, eu quero sair dessa vida, mas se eu não tiver um apoio, não tem como. Antes de apertar, tem que estudar um esquema de pegar os drogados e levar para uma clínica ou para uma chácara e botar a trabalhar. Dar serviço para quem quer mudança. Separar o trigo, se me oferecessem eu iria agora, e comigo iria mais um monte. Em qualquer emprego, desde servente de obra até limpar pinico de hospital. Qualquer coisa é melhor que isso aqui. Olha cara, tem horas que eu fico sem couro na bunda de tanto caminhar, tenho que ficar tocando “Maizena”, pomada não adianta, e daí já são quatro reais e pouco. Se o governo me desse um apoio, eu com certeza iria aproveitar. Eles estão ajudando um pouco, mas esse pouco não está ajudando muito. Tanto é que tu podes ver a bagunça que está isso. Quantos roubos têm nessa Redenção. Olha cara, se me oferecessem apoio, eu não sei, mas acho que se eu não parasse, eu diminuía a cachaça.

Guerra – Quando eu cheguei você estava lendo uma revista, até que série você estudou?

André – Até a quarta. O meu maior sonho era estudar, desde pequeno. Mas quando a minha mãe se matou eu fiquei com problemas psicológicos. Então eu fiz tratamento de três anos e pouco no hospital psiquiátrico São Pedro. Fiquei muito tempo lá, um ano e pouco. Quando voltei a estudar, no mesmo colégio, a professora leu o bilhete que mandaram do hospital para a diretora na frente de todo mundo. Daí todo mundo começou a me chamar de louco, e eu criancinha, né cara, os alunos todos me chamando de louco e me dando tapa na cabeça. Eu coloquei as mãos na cabeça e tive que sair chorando. Bah, aquilo ali me deixou irado. Nunca mais voltei para a escola.

Guerra – Qual o nome da professora?

André – Professora Rilda, eu nunca mais me esqueci do nome dela.

Guerra – Sabe o sobrenome dela?

André – Não lembro.

Guerra – E o nome da escola?

Baependi, no bairro Glória.

Guerra – Um sonho de infância.

André – Bah, meu maior sonho era estudar e ser um policial, policial rodoviário, por causa das motos. Bah, hoje se eu tivesse condições de arrumar um lugar para dormir, trabalhar e poder estudar duas, três horas de noite, eu estudava. Eu fico triste de não ser ninguém, tenho vergonha de mim. De ir visitar um parente e ser humilhado por eles, por ser um fracassado.

Guerra – O que você pensa estar fazendo daqui a cinco anos?

André – Bah cara, vou ser bem sincero contigo, eu estou desiludido, eu não vejo futuro para mim. Só se eu tiver o apoio de alguém que me dê um emprego. Porque no carrinho tu ganhas hoje e amanhã tu estás morto de cansado, daí tu não consegues fazer o mesmo serviço, então o que tu ganhas hoje, gastas amanhã. Hoje eu achei comida, tenho vinte e três “pila” guardados, mas se amanhã eu não achar comida, vou ser obrigado a comprar.

Depois de mais de uma hora e meia de conversa, despedimo-nos. Ele mais leve de ter podido desabafar as lástimas de uma vida vivida sem vida; eu com todo o peso de uma responsabilidade social irresponsável. Que país é este em que uns vivem de luxo, e outros de lixo? A desigualdade é um fato, mas e a indiferença? Dar voz ao lixo não basta, enquanto a reificação dos marginalizados for a atitude confortável predominante, todos os gritos dos oprimidos serão abafados pela surdez estúpida do sistema.