quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O braço da arrogância jamais verá o rosto da minha humildade.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Um Livre Suspiro

Sou aquele ou aquilo que se perde para não se encontrar. Que ruma e desarruma em direção a lugar nenhum. Que se deixa guiar ao sabor dos ventos que destinam um destino distinto de qualquer cor tingida no ar. Sigo com o único objetivo de não objetivar metas retas. Quero curvar pelos caminhos que se podem fazer transversais. E simplesmente viver demoradamente com todo o empenho de quem não tem tempo a perder. Sou aquele que segue pela deriva existencial de estar e se sentir vivo a cada badalada do coração. Faço do que chamam nada o meu tudo, e do mais simples borrão uma razão para ter uma ideia, caminhar numa loucura ou viver uma utopia. Se me faço louco por querer ser livre ou torpe por ser feliz, que o infinito e o acaso deem força à minha insensatez e deixem-me abandonar completamente minha razão, para eu poder viver eternamente o presente efêmero de um suspiro infinito de liberdade.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Liberdade? Hein?

Cecília Meireles, no Romanceiro da Inconfidência, escreve: “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Infelizmente, terei que discordar. Atualmente, é dificílimo fazer compreender esse conceito. Entender é fácil. Explicar é possível. Porém, fazer os outros entenderem é quase impossível. Talvez, seja porque nesses dias o sonho humano não alimente a mais nada, a não ser à futilidade. A previsão de Orwell adiantou-se em, pelo menos, meio século.

A sociedade é tão repressora e reprimida, tão opressora e oprimida, tão alienadora e alienada que esse conceito está se tornando impronunciável. Lembro-me do livro 1984, de Eric Arthur Blair. No livro, é desenvolvida a “novilíngua”, o idioma criado pelo Partido do Grande Irmão. Uma passagem interessante é quando um funcionário expõe que “todo o objetivo da novilíngua é estreitar a gama do pensamento”. Ele continua, “no fim tornaremos a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la”. As “crimideias” são os pensamentos relacionados ao conceito de rebelião, portanto considerados subversivos. No mundo de George Orwell, pseudônimo de Arthur Blair, o controle da realidade dava-se pelo controle das mentes. Destruir palavras era o primeiro passo para essa conquista. “Cada ano, menos e menos palavras, e a gama de consciência sempre um pouco menor.” De fato, a capacidade de conceituar a realidade é uma ferramenta indispensável às utopias que visam à transformação. “Como será possível dizer ‘liberdade é escravidão’ se for abolido o conceito de liberdade?"

Orwell escreveu isso em 1949. No livro, era previsto que a novilingua fosse um idioma perfeito até 2050. Entendia-se por perfeito o momento em que todo o conhecimento da anticlingua – idioma materno – fosse abolido. “Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência."

Incrivelmente, já em 2011, discutir sobre o conceito de Liberdade é uma tarefa significativamente árdua. Muitas pessoas não conseguem entender, visualizar ou, sequer, imaginar. Observo que é como se um entusiasta da informática tentasse explicar a cavaleiros medievais as maravilhas da internet wireless. Esse triste cenário não reflete apenas os efeitos de uma crescente imbecilização do pensamento contemporâneo, mas também das consequências de uma sociedade cada vez mais policialesca, institucionalizada e burocratizada.

Se crianças são criadas sem liberdade por pais que foram reprimidos, dentro de um Estado opressor, como se poderia vislumbrar o conceito de Liberdade? No senso-comum torna-se óbvio e auto-evidente que não seriam necessários tantos dispositivos de controle, de repressão e de normatização se os homens pudessem ser livres. Definitivamente, planta-se a crença de que a Liberdade não é possível para os homens.

A perpetuação dessa visão de mundo me espanta. Diferentemente dos cavaleiros medievais – que nunca tiveram contato com a internet wireless – a sociedade vive sob a égide da visão que nega a possibilidade de liberdade desde 1651, quando Thomas Hobbes publicou o Leviatã. A concepção de que as pessoas deveriam renunciar à sua Liberdade em troca de tranquilidade, não me pareceu eficiente. Desde Hobbes, duas guerras mundiais, fascismo, nazismo e outros ismos selvagens assolaram a humanidade. Não precisamos remeter somente a dados históricos para confirmar isso, podemos coletar as estatísticas atuais das grandes cidades. Concluirmos que o Direito Positivo não contribuiu para garantia do Bem Comum.

Quando falamos em Liberdade, imediatamente somos retrucados por visões apocalípticas, inerentes a um sistema doente. “Então todos poderão matar-se uns aos outros.” “A violência imperará!” “Será um retorno à barbárie!” “O que faremos com os que não quiserem trabalhar?” “E os ladrões?” É engraçado notar como todos têm certeza absoluta do que falam. Quase não há pessoas que critiquem a possibilidade de que, em liberdade, muitas formas de transgressões poderiam perder, imediatamente, seu sentido. Raras são as vezes que uns e outros refletem sobre a possibilidade de muitas “disfuncionalidades” do sistema existirem justamente em função, apenas, do próprio sistema.

Se não bastasse isso tudo, cada vez mais leis e normas são redigidas, cada vez mais as formas de punição se recrudescem, porém, cada vez menos, a paz é conquistada. Condomínios parecem prisões; carros, tanques de guerra; homens, soldados treinados para matar; e assim por diante. Tudo inútil. Não sei se sou o único, mas é exatamente isso que entendo por barbárie.

As pessoas estão cegas, alheias de suas próprias consciências. A noção de que o “Homem é o Lobo do Homem” não encontrou solução no apelo à lei e à ordem. Alguns homens já despertaram desse transe. Pena que ainda são poucos. Bertolt Brecht é um deles. Em seu poema, “Os Dias da Comuna”, num trecho ele diz: “Considerando nossas fraquezas, os senhores forjaram suas leis para nos escravizarem. As suas leis não serão mais respeitadas”.

Estão todos uns contra os outros, enfraquecendo-se mutuamente. Enquanto os homens deixarem-se iludir no sentido de que seus inimigos são os próprios homens, continuarão a legitimar esse sistema opressor e mediador das relações, sem nunca perceberem que é este mesmo o verdadeiro Lobo de todos os homens.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Vegetarianismo: ação política ou filosofia individual?

As lutas cada vez mais se esvaziam de sentido. A alienação torna-se sistêmica. Os pontos de fuga existem, mas vão sendo, um a um, apropriados. A visão individualista e fragmentada corrompe, distorce e confunde os meios e objetivos das causas. A luta coletiva, eminentemente de cunho político, torna-se uma lamentável, simplória e insignificante posição individual, isolada e sem anseios transcendentes. Enfim, tudo aquilo que é político se tornou sinônimo do enfadonho, do chato, do desprezível e do insuportável - com toda a razão, obviamente. Filosofias de vida, outrora de caráter subversivo e contestatório, perderam-se no caminho. E ações que antes eram relacionadas a perspectivas utópicas segregaram-se à míngua. Disso tudo decorre o fato de hoje existirem milhares de pessoas que optaram, sim, por não comer carne, mas não por tornarem-se Vegetarianos.


Há uma diferença fundamental entre não comer carne e ser Vegetariano. Não comer carne é simplesmente uma opção. Ser um Vegetariano é um ideal. Existe muita diferença entre ambos. Não comer carne pode ser resultado de infinitas circunstâncias: desde alguém que tão somente não gosta do sabor da carne até o caso de pessoas que apresentam restrições fisiológicas para uma alimentação carnívora.

Outro aspecto que desponta, é a escolha por estilos alternativos de vida. Muitas pessoas optam por aderir a determinados padrões de comportamento, em busca de diferenciação social. Obviamente, tal tendência não deveria causar espanto em uma sociedade movida por um sistema tão homogeneizante.

Claro, existem casos de pessoas que passam a não comer carne por respeito, amor ou piedade aos animais. Contudo, mesmo nesse caso, ainda assim, apenas são pessoas que decidiram, pura e simplesmente, não comer carne. Isso não deve ser considerado completamente negativo, no entanto não se pode confundir tal conduta como sendo a de um Vegetariano. Ser Vegetariano [com letra maiúscula] é, inextricavelmente, uma ação política, e portanto, um ativismo.

O ponto em que um mesmo aspecto (não comer carne) adquire feições divergentes é na consciência motivadora do ato. Quem opta por não comer carne como uma filosofia individual de vida não faz dessa prática uma ação subversiva, ou seja transformadora. Somente quando a motivação está em relação a um contexto mais amplo é possível vislumbrar, de fato, uma transformação. Uma filosofia de vida que não almeje transformar, nem mesmo pode ser considerada uma Filosofia. Filosofia é uma busca perpétua pela sabedoria. E somente se busca algo que não se pode alcançar, superando, infinitamente, o degrau anterior da ignorância inata, transformando, desse modo, a consciência do sujeito que procura.

O ativista Vegetariano – verdadeiro Vegetariano – é aquele que coloca em perspectiva a sua prática individual de não comer carne, objetivando transformar o seu contexto. Sentir piedade ou amor pelos animais nada mais é do que um aspecto propulsor. O que determina a efetividade, eficácia e importância de uma prática é a sua dimensão utópica. O sujeito ativo em sua existência – ativista em prol da vida – é aquele que tem consciência de que sua ação de não comer carne subverte a lógica vigente, subverte as relações estabelecidas com os seres vivos transformados em objetos de cobiça e de desejo.

É impossível a proposição de uma sociedade ideal ou igualitária enquanto houver um centro de poder sexista, racista, classista ou, no caso, especista. Qualquer que seja a concepção de mundo idealizada que se baseie somente ou no homem ou no branco ou no rico ou na raça humana será, invariavelmente, uma concepção parcial, reducionista, simplista e insuficiente para compreender a complexa dinâmica existencial da vida. Assimilar essa concepção e lutar por ela é o papel do Vegetariano. Para se alcançar esse objetivo é necessário muito mais do que não comer carne.

De forma sucinta, reduzir a quantidade de carne consumida pouco altera a realidade instaurada. Os estilos alternativos de vida podem ser denominados como modismos porque, em sua maioria, estão esvaziados de sentido. Pessoas que decidem não comer carne por qualquer motivação divergente da de desvelar a alienação funcional do sistema, não são nada mais do que reprodutores do próprio sistema.

Do mesmo modo que algumas centenas de milhares de chesters são poupados no Natal, outros milhares de cães toys, microtoys e outras derivações aberrantes geneticamente modificadas são produzidas em laboratório, o ano todo. Novamente, o sistema empenha-se em contentar os prazeres de donos e donas que optaram por não comer carne. O sistema reiventa-se. Ele sempre está pronto para atender o gosto do freguês, tenha ele o paladar que tiver: sangue escorrendo do cupim malpassado ou alface “só com vinagre”.

Enquanto milhares de autodenominados vegetarianos e vegetarianas enfurnam-se em suas academias em busca de estilos de vida “fitness”, o sistema não para. Em uma velocidade cada vez maior, ele segrega, individualiza e fragmenta a sociedade. Através de práticas individuais, embasadas em filosofias sem sabedoria, a massa pulverizada segue seu caminho, sem destino.

Alheios, alienados e isolados da realidade real, tentam amenizar esse absurdo desprovido de sentido. Consomem drogas [sintéticas ou nem tanto], consomem bens [não-duráveis ou induráveis], consomem vidas [virtuais ou ilusórias], consomem relações [pagas ou compradas], consomem felicidade [infeliz ou triste], enfim, consomem vida [morta ou assassinada]. De tudo que fica, é a certeza da longeva obsolescência existencial e das infinitas possibilidades impossíveis. Tudo são apenas ideias sem ideais, lutas sem causas, utopias sem esperanças. E no meio disso tudo, as ações políticas são esvaziadas de todo seu potencial revolucionário subversivo, tornando-se, apenas, novos aparatos distintivos nos cenários cults e, agora, culinários de uma modernidade pateticamente absurda.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Ao CU de Cada Dia

Deixe de ser imprestável. Viva, morra, mate, sorria, chore. Enfim, faça alguma coisa da merda da sua vida. Viver está se tornando uma atividade proibida em nossa sociedade.

Todos estão acuados [a-CU-ados]. E indo na direção do CU, todos estão se transformando em merdas. Não uso merda com uma conotação pejorativa, muito pelo contrário. Apenas assinalo que o bolo fecal, vulgarmente conhecido como merda, é o resultado de um processo de deterioração e putrefação continuada. Todos aqueles com seus respectivos CUs na parede devem dar-se conta de que viver é mais do que defecar a existência.

Viver é uma revolução diária, cotidiana e habitual. Viver é subverter as imposições viscerais que querem prender a liberdade.


Mate seus pais. Queime sua escola. Fuja da sociedade. Suicide-se.

Depois disso, convide-me para tomar um suco.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Por Que Derivar?


A deriva é um exercício prático que tem como finalidade construir situações a partir da ação de deixar-se guiar pela psicogeografia. Esta, por sua vez, é a capacidade que os ambientes têm de produzir efeitos - conscientes ou não - nos afetos, nas emoções e nos comportamentos dos sujeitos. A deriva retoma o conceito de flâneur, descrito por Baudelaire como a pessoa que passeia pelas ruas e cantos desconhecidos da cidade sem compromisso, sem pressa, observando a tudo e a todos meticulosa e despretensiosamente, simplesmente flanando ao sabor do acaso. A ideia da deriva foi retomada com força pelos teóricos do urbanismo e arquitetura, principalmente por Guy Debord, importante filósofo, escritor, cineasta francês e fundador da Internacional Situacionista: movimento de vanguarda que propunha a apropriação dos espaços urbanos através da prática da deriva.

Entretanto, mais do que o aspecto cultural transcendente propiciado pela apropriação de territórios através da deriva, o ato de derivar colabora com a construção da subjetividade daqueles que derivam. A subjetividade humana pode ser pensada como uma fábrica de sentidos em constante transformação. Ou seja, a cada instante que estamos sendo o que somos, também estamos deixando de ser o que éramos e nos tornando uma nova forma de ser. Esse processo de constante mudança dá-se conforme nossas contingências, ou seja, conforme as relações que estabelecemos com os outros e com o meio no qual estamos inseridos. Dessa forma, nós seremos, invariavelmente, o resultado impreciso e instável da miscigenação dessas circunstâncias.

Muitas pessoas buscam restringir sua existência a espaços delimitados, situações estanques e pessoas específicas, na intenção voluntária ou involuntária de obter um poder de domínio sobre seu futuro. Nessa forma ascética de existir, há embutido um anseio por segurança, não uma segurança exclusivamente relacionada à integridade física, mas uma segurança em âmbito subjetivo, um anseio de preservarmo-nos inabalavelmente como somos, como conhecemos a nós mesmos. Tudo aquilo que é diferente ou pode produzir diferença em nós é assustador, quanto mais fechados em nós mesmos somos, mais pavor o Outro irá causar-nos. Sendo assim, a deriva surge como uma prática libertária, uma forma de revolução individual. O termo revolução vem bem a calhar, pois a principal característica da deriva é tornar as pessoas qualquer coisa que não seja o que eram. Esse poder revolucionário atribuído à deriva advém principalmente de um importante elemento indissociável a ela: o acaso. Enquanto em tempos antigos as tradições, os ritos e os rituais eram as formas pelas quais as gerações mantinham uma certa comunhão comunicativa e, por conseqüência, perpetuavam a cultura de forma rígida; nos dias de hoje, a rigidez histórica e cultural foi abalada a tal ponto que os sujeitos não encontram sua identidade em nenhum círculo de convívio específico, mas em todos, ao mesmo tempo. A cultura pós-moderna é transcultural, intersubjetiva e cada vez mais complexa. Então, se em outrora, devido a pouca flexibilidade cultural, os papéis eram clara e objetivamente definidos, dificultando significativamente o estabelecimento de uma subjetividade singular, contemporaneamente há o total avesso: uma permeabilidade total que, de forma semelhante também compromete a apropriação de uma subjetividade singular. Entretanto, atualmente, o próprio sistema que, devido à profusão de significados dificulta a incorporação de uma identidade, também cria brechas que permitem, através da deriva, por exemplo, os sujeitos serem transeuntes da própria existência, possibilitando que o acaso colabore na construção de um complexo existencial, deixando que a subjetividade transcenda os próprios limites da subjetividade.

O mais incrível presenciado por aqueles que têm o hábito de derivar é o aspecto de pertencimento e apropriação que brota quase que naturalmente. Aqueles que derivam podem perceber o espaço como uma extensão corpórea, um apêndice tão indissociável quanto qualquer outro membro físico. Essa apropriação dá-se no momento em que se deixa de ser espectador passivo e passa-se a ser autor, ou melhor, autor-ator de sua própria realidade. Como teorizaram muitos críticos contemporâneos, cada vez mais estamos inseridos em uma sociedade do espetáculo, a qual inverte as noções de público e privado, tornando cada vez mais os sujeitos prisioneiros de seus medos e desconhecimentos. A realidade cada vez mais mediada [midiada] faz com que a população das grandes cidades - principalmente - tenha cada vez menos informações acerca do que lhes diz respeito a partir da vivência, do empirismo e da contemplação, obtendo o conhecimento de suas “verdades” majoritariamente através de instrumentos que as distanciam daquilo que deveria ser o objeto primordial: o mundo. Essa alienação colabora para que aquilo que é desconhecido seja conhecido sobre a forma estática de “desconhecido”, portanto perigoso e passível de distanciamento. Esse distanciamento não somente nos afasta do mundo e da realidade imediata, como também afasta-nos de nós mesmos, afinal sem as relações com o mundo e com o Outro não concretizamos o desvelamento e a compreensão de nós mesmos. Na contramão desse aprisionamento constante, quando colocamo-nos a derivar, impelidos pelo desejo instigador, realizamos conexões de causa e efeito, início e fim que nos permitem conhecer o desconhecido e colocá-lo como um ente próximo. Há uma subversão dos sentidos: aquilo que causava medo, angústia e tensão, passa a ser um espaço de libertação e regozijo, afinal, quando absorvemos o Outro antropofagicamente, somos impregnados por uma interpretação singular daquele fenômeno o qual, por ser irrepetível, não pode ser descrito de outra forma que não como a expansão de nossa subjetividade. Absorver a realidade é alimentar nossa subjetividade, pois, por ela deixar de ser constantemente o que está sendo, constantemente permanece a ser o que é: uma entidade indissociável do que somos, em constante construção, em eterno vir-a-tornar-se, o que se pode chamar de devir existencial.

Apesar de a deriva dar-se no espaço das ruas, as transformações perceptivas vão para muito além da compreensão arquitetônica das cidades, elas também produzem diferenças significativas em nossa maneira de compreender aquele outro humano. Como os que derivam têm o espírito e a mente expostas à realidade, deixam-se absorver tudo aquilo que se possa agregar à subjetividade. A noção do Outro homem também é absorvida e podemos passar a perceber que aqueles que transitam ou transitaram, que estão ou estiveram em contato conosco são, apesar de serem o não-eu, tão importantes a nós quanto nós mesmos, pois são eles que também constroem nossa subjetividade. A maior contribuição da deriva à humanização das pessoas é seu potencial de expandir a subjetividade, torná-la cada vez mais maleável, elástica, flexível e capaz de abarcar fragmentos de outras realidades, mesmo que realidades incompreensíveis. Aqueles que derivam não estão em busca constante de conclusões, mas estão com conclusões constantes enquanto buscam derivas. Ou seja, a deriva não é um ato de construção ou solidificação, muito pelo contrário, derivar é desconstruir, implodir velhos conceitos, reformular, reorganizar e tornar-se algo fruto também do acaso, do esporádico, do imprevisível e, até mesmo, tornar-se fruto daquilo que não se sabe. Não raro, aqueles que derivam se põem a experimentar experiências registradas anteriormente como desagradáveis, simplesmente pelo fato de garantirem que estão transformando a realidade de uma forma não metódica ou previsível, desse modo transformam a realidade de uma forma não compreensível nem por eles próprios. Derivar é organizar a harmonia em meio ao caos. É pregar peças em si mesmo. É ser sujeito ativo da sua própria realidade.