quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Epopeia de Um Errante


Nasci nesse mundo, eu e mais cinco irmãos. Durante meus primeiros meses de vida conheci aquilo que aqui chamam de amor. Um amor incondicional, amor materno, amor que dá a carne pela vida do outro. Aprendi a ser assim desde pequeno: sempre preferir morrer a matar, sofrer a machucar ou deixar que machuquem meus entes queridos.

Quando fiquei mais velho, descobri que a vida tinha mais a oferecer do que eu conhecia no ninho materno: um nicho de carinho e segurança. Inicialmente, fiquei inseguro quanto a qual caminho tomaria na vida, pois sempre quis estar ao lado de quem amo: minha mãe e meus irmãos.

Meu pai não conheci, diz minha mãe, era alguém aventureiro que vagava pelo mundo, lépido e sempre disposto a fazer novas amizades, mas , no fundo, escondia mágoas de alguém solitário em busca de um carinho especial e amor verdadeiro. Por ser assim tão carrancudo, fez de minha mãe apenas mais uma, mas não era de todo mau coração.

Dias atrás, já sonhava eu em seguir os passos do meu pai. Quem sabe um dia encontrá-lo pelas esquinas da vida e trocarmos ensinamentos. Minha mãe advertiu-me que o mundo fora dali não era tão belo como muitos pintavam, tampouco harmonioso, sincero e solidário. Então, eu com meus botões, fiquei a matutar de onde vinham aqueles ensinamentos tão brandos e profundos que minha mãe discursava aos ouvidos meus e de meus irmãos, se não existia mundo tão belo assim?

Um belo dia, não tão belo assim, minha mãe, com lágrimas nos olhos, disse que teria que nos deixar. Sem entender, meus irmãos e eu, colocamo-nos a instigá-la sobre essa atitude; cabisbaixa e com voz trêmula ela balbuciou:

-Meus filhos lindos, não quero que pensem mal de mim, mas as regras do jogo não sou eu quem dou. Este mundo é perverso e repleto de pessoas que são preconceituosas ao nosso respeito...Um de meus irmãos, o mais tímido, apelidado por nós, carinhosamente, de “Patinho Feio”, retrucou:

-Mamãe, é por causa de nossa cor? Antes mesmo que ela pudesse responder, ele almejou-a com uma nova pergunta:

-Porque vivemos na rua?

Meu irmãozinho não conteve as lágrimas e pôs-se a chorar em coro com minha mãe.

A esta altura da história, minha garganta começou a secar; senti como se o fogo consumisse minha laringe; não me contendo, também entreguei-me ao pranto.

Minha mãe, vendo aquela cena horrenda, revelava em seu semblante o horror da calamidade que ali se abatia.

-Meus filhos, sei que são jovens para entender, mas um dia, quem sabe, me perdoem por isso. Juntos somos frágeis, vulneráveis aos terrores que assolam esse mundo. Desprotejo vocês para sua própria proteção.

Eu, que era o mais velho - dada a circunstância da ordem de nascimento - tomei frente àquela situação, e o que minha pouca idade não revelava, nem a mim mesmo, naquele momento espalhou-se ao vento como brisa de verão:

-Mamãe precisa partir, e nós sabemos o quanto ela fez por nós, se no momento não entendemos sua atitude, no futuro a entenderemos. Não vamos fazer desse momento pior.

Minha mãe olhou-me com aquele peculiar olhar de mãe coruja, orgulhosa de ver as vitórias de seu pequeno filho prodígio. Mas o instante, apesar de eterno, acabou-se logo; daquele jardim suntuoso que florescia entre nós, fomos remetidos à tragédia consumada: a despedida.

Carinhos e afagos demorados não faltaram; todos queriam uma vez mais, sentir o doce e familiar cheiro de mãe, como se quiséssemos guardar conosco para eternidade o que de mais valioso foi-nos dado: nossa mãe. O amor verdadeiro.

Ao longe, os passos lentos dela foram se perdendo. Quando as retinas atentas e pescoços esticados já não podiam delinear a silhueta daquela por quem nossas lágrimas escorriam, a tristeza tomou conta de nossos corações; fomos tomados por uma sensação inexplicável de incredulidade.

Daquele momento em diante senti como se já não mais fosse completo, como se uma parte vital de mim tivesse sido jogada a esmo, a vagar pelo mundo.

O tempo passou; os sentimentos não. Contudo, eu e meus irmãos, com a idéia amadurecida de continuar a vida, decidimos também separarmo-nos e seguirmos a vida, como aconselhou nossa mãe.

Tanto eu como eles sabíamos exatamente o que procurávamos: queríamos reencontrar a parte que nos faltava. E assim fomos, cada um no sentido de um vento, para, quem sabe, um dia, com vidas restituídas, pudéssemos juntos comemorar vitórias.

Infelizmente esses sonhos de desbravadores inexperientes não se concretizaram; aos poucos entendi o que minha mãe quis dizer com mundo cruel.

Nas ruas de uma grande cidade, pus-me a caminhar em busca de alguém para proteger, e que, em troca, desse-me amor. Infinidades de rostos encontrei, todos com feições sofridas, homens e mulheres não amados, tão secos que pareciam serem feitos de pedra. Tentei deles aproximar-me para amá-los, e, quem sabe, curar as feridas que a vida os fez. Mas foi em vão, a falta de amor dessas “pessoas” parece tê-las feito mal, em lugar do amor, cobriram o espaço vazio com ódio.

Sou persistente, minha raça me fez assim: forte, lutador, destemido. Entretanto, o ódio desse mundo é infindo, parece brotar do concreto. A solidão é dividida em grandes muralhas muradas, cercadas, que protegem uns dos outros. Olhando daqui de baixo, vejo irmãos, ou meio irmãos, sejam o que for, são muito parecidos entre si, mas quando se cruzam, fingem não se ver. Não me admira nada que a mim sobre apenas o descaso. Se não amam a si próprios - seres que se dizem superiores aos outros por serem de “raça pura”, seres intelectualizados, sábios, responsáveis por tudo que há de melhor no mundo - o que restará a mim e aos meus irmãos, seres da raça inferior? Sou desconhecedor de teorias nazi-fascistas e sistemas escravocratas , mas sei muito bem, que em épocas remotas - nem tão remotas assim - uns eram considerados lixo e outros ouro, e que ainda hoje existe resquícios dessas linhas de pensamento . Com certeza eu não sei exatamente o que aconteceu, mas ainda sinto no meu couro as conseqüências dessa segregação. Não guardo ressentimento, queria apenas que tudo voltasse a ser como era em um lugar que, se não me engano, é chamado Éden; lá, todos viviam em paz e amor, exatamente como no ninho da minha mãe. Lá não existia raça, todos eram iguais.

Mas o tempo é inabalável e continua a passar. A tecnologia de que tanto falam, fez-me saber que eternizou a mais alguém: meu irmão do meio faleceu em mais um trágico acidente de carro. Um senhor de meia idade, aparentando seus 20 anos, corria muito, acredito eu que devia ser uma emergência, pois ao ver meu irmãozinho, distraidamente atravessando a rua, não pode parar, nem ao menos para prestar socorro ao coitadinho que, segundo testemunhas, sofreu muito até ser socorrido pelos longos braços da morte.

Não pensem vocês que não sofri. Sofri e sofro muito, mas eu entendo o mecanismo da vida. Uns morrem para outros sobreviverem. É assim. Fazer o quê? O que eu e minha raça podemos fazer?

A tragédia, não sei eu onde termina nesse mundo, sei, apenas, onde terminou para mim. Em um belo dia, belo mesmo, estava eu com fome, frio, dor e exausto quando vi ao longe duas pessoas que pareciam ter sorrisos nos rostos. Corri em direção a elas. Deparei-me com dois jovens que realmente sorriam muito. Na hora fiquei extremamente comovido com o achado: pessoas com amor no coração, pensei eu.

Fiz o que havia ensaiado a vida toda, um ritual complexo de demonstração de carinho e agrado. Funcionou, levaram-me para um lugar mais calmo, onde eu acreditava que me dariam de comer, pois estava faminto; mas também, se não dessem, o mais importante eu havia encontrado: a amizade.

No início achei que estavam se divertindo mais do que eu, pois riam entre si. Achei melhor não importunar, de repente poderiam estar achando-me engraçado.

Mais tarde um pouco, enquanto eles preparavam alguma coisa - que eu acreditava ser algo de comer - comecei a sentir que algo não estava totalmente certo. Quando aprontaram o que faziam, começaram a se aproximar, senti em seus olhos um olhar diferente daquele de outrora, parecia intricado, até, quem sabe, sádico... A brincadeira perdeu a graça para mim, quando senti em meu corpo o fogo lacerar minha alma, corroer minha vida aos poucos. O cheiro da gasolina queimando sobre meus pelos, fritando minha carne sufocava minha respiração. Enquanto as labaredas arrancavam minha pele, contraíam meus músculos que tremiam frenética e involuntariamente, fui perdendo a noção de tempo e de espaço. Não posso dizer se meus latidos eram tão altos de dor, medo ou tristeza. Não foi pouco tempo, mas também não durou uma eternidade. A dor aos poucos deu espaço ao cansaço, fui deitando-me aos pés daqueles que foram meus carrascos. Não sentia raiva deles, afinal eram seres inferiores, incapazes de saber o que se passa dentro de um coração de verdade. Todavia, ficava em meu peito a incompreensão: o que leva alguém a agir assim? O que esse planeta tem de tão atrasado que faz de seus habitantes instrumentos de destruição e tortura? Que culpa meus irmãos e eu tínhamos de existir vagando nas ruas corações traídos, maltratados e humilhados? Será que fomos nós os responsáveis por essa vida injusta que habita esses corações negros? Será que não foram vocês mesmos que plantaram essa semente de dor e insegurança em seus corações? Será que à noite, quando sua filha linda, perfumada e bem arrumada sai para se divertir, aquele pensamento renitente que soa como mal agouro o tempo todo ao seu ouvido, não é o reflexo daquilo que você cultiva durante o dia? Não será medo de que o universo cobre pelo descaso dado por você ao que está à sua volta?

Eu não estou mais aí, não pude realizar o sonho da minha mãe: conquistar o mundo. Mas agora eu sei o que ela quis dizer. Eu entendi ao que ela se referia quando dizia “mundo mau”. Esse é um ambiente dominado pelos animais: seres irracionais que vivem vidas mortas, os quais têm medo uns dos outros, temem a morte, pois sabem que matar está em seu sangue, sangrar está em seu destino. Meus irmãos e eu não tínhamos medo porque não conhecíamos as trevas. Agora eu sei, acredito que meus irmãos também, a grande maioria deles pelo menos. Sei que apesar de uma vida curta, vivi e morri sem mágoas, sem arrependimentos. Não pude fazer bem a ninguém, pois não deixaram; mas também não fiz mal. Àqueles que me fizeram sangrar, deixo meu perdão e estimas de evolução; todos merecem uma segunda chance. Àqueles que na rua seguiram sem a mim notar, desejo-lhes sorte, vão precisar; esse mundo é trágico. Se não conheceram minha história, a conhecerão em outros corpos, senão de um Canis familiaris, a presenciarão em corpos de, quem sabe, entes próximos, muito próximos. O mundo é comum a todos, suas atribuições também. O que acontece a um, pode acontecer a todos. Não desejo tristeza a ninguém, mas me ensinaram que não se deve jamais interferir em um ciclo biológico. O homem está na teia alimentar do homem. No genoma humano está inscrito a morte, tristeza e muita dor.

Eu estou livre das algemas desse mundo, mas meus irmãos não. Ainda têm muitos deles soltos, abandonados; pobres guesas, andarilhos em busca de amor e carinho. Se tiverem racionalidade ainda, por favor cuidem dos meus irmãos. Somos fracos. Nossas patas não foram feitas para matar. Não sabemos nos defender. Não acreditamos em defesa, pois não conhecemos o ataque. Vivemos nossas vidas com um único objetivo: o de poder um dia tornar mais viva a vida de alguém que ama viver tanto quanto nós.

Onde Moram Os Senhores da Guerra?




O que há em comum entre semitas e africanos? Para um etnólogo essa questão deve ser extremamente simples, visto que ambas as civilizações se desenvolveram muito próximas uma da outra, provavelmente sofrendo influências recíprocas. Uma reflexão contemporânea mais aguçada, entretanto, mostra-nos que, apesar de tão semelhantes, existe um abismo entre elas.

Em um conflito que durou pouco mais de três semanas, morreram cerca de 1300 pessoas da população da faixa de Gaza e pelo menos 10 soldados israelenses, sendo que destes, 3 foram por fogo amigo.

A mídia já calejou o mundo com notícias de inumeráveis batalhas, acordos não cumpridos e muito sangue do conflito árabe-israelense revisitado. Toda a massa de hipnotizados pela janela alienante está a par de cada detalhe, e de cada –suposta- razão que move, e moveu essa sangria desenfreada e ignorante entre povos irmãos. Contudo, se deve fazer uma ressalva a dados curiosos: a mesma mídia que perpetua capas de jornais de alta circulação com informações do conflito “pop”, é a mesma que ainda está encabulada em relação a existência de um conflito de proporções incomparáveis. Enquanto a faixa de Gaza foi – literalmente – um palco de atrações para todas as grandes agências de notícias do mundo, que acompanharam dia-a-dia, tiro a tiro o desenrolar dessa novela oriental, findada com um saldo total de aproximadamente 1310 mortos, Darfur segue seu martírio que perdura, oficialmente, desde 26 de Fevereiro de 2003, e que nesse relativo curto espaço de tempo já vitimou mais de 200.000 pessoas, segundo estimativas – “otimistas”- de ONGs que unem esforços no local para voltar as atenções do mundo a esse sangrento genocídio.

A questão é: por que um conflito no norte da África, entre tribos desnutridas e milícias despreparadas, se estende por tanto tempo, causando tanta destruição sem a intervenção das “grandes nações”? O que motiva esse descaso? Onde está o Conselho de Segurança da ONU? E os riscos que essas milícias podem trazer ao ocidente se resolverem, porventura, apoiar o terrorismo? Onde está a política de segurança nacional norte-americana? Saddam Hussein foi sentenciado à morte pelo massacre de 148 xiitas da aldeia de Dujail. Se assassinar 148 pessoas – número provavelmente “irrisório” nas listas de muitos de nossos famosos traficantes cariocas – é suficiente para ser condenado por crimes contra a humanidade, porque um mesmo tribunal não é implantado imediatamente para encerrar com essa lástima africana? Ou melhor, porque, além disso, não se é instaurado,concomitantemente, um outro tribunal para avaliar a ação israelense na faixa de gaza? A morte desses 1300 palestinos, considerando que dentre eles aproximadamente 700 eram civis, e ao menos, 400 crianças, soa como um extermínio desmedido, genocídio. Essas palavras bastante ligadas à, em muitas vezes, dolorosa história hebraica, deveriam ser a mola propulsora de campanhas judaicas ferozes visando coibir toda e qualquer atitude que remonte os tempos do holocausto; pois quem cala consente, e não deveria ser assim, nem na África, tampouco no jardim judeu.

O que está havendo? A ascensão de Barack Obama ao trono, dia 20 de Janeiro, garantiu a completa retirada das tropas Israelenses no dia subsequente do território palestino; entretanto, apesar das incontáveis publicações revelando a orgulhosa descendência queniana no imperador do mundo, as tropas dos janjawid, a milícia armada possivelmente apoiadas sorrateiramente pelo governo sudanês, continua sendo a algoz do genocídio africano.

Não se pode resumir ou simplesmente restringir a uma ou duas razões as causas que levaram a conflitos tão complexos; a política é um imbróglio caótico. O conflito armado com o Hamas e a política ambiciosa e irracional movida pelo capitalismo selvagem neocolonialista do século XIX, cuja política de partilha da África colocou tribos rivais, de culturas dissonantes, em um mesmo território, como no caso de Darfur, não são os principais motivos que fazem essas guerras e genocídios se estenderem – ou não. Existem muitos interesses externos; principalmente interesse em angariar apoio da opinião pública. E, para isso, segue o jogo de xadrez com vidas humanas; segue a banalização do direito à vida, mas jamais a banalização do direito à propriedade.

Conflitos criados, genocídios ignorados. O que é interessante é esmiuçado, sugado, aproveitado ao máximo. O que não o é, é relegado ao um segundo plano, ignorado completa e absolutamente. Nessa montanha russa que é o capitalismo consumista e sedento, a guerra é um promissor investimento; com individualização dos lucros e socialização das perdas.

Assim é a vida: uns morrem para outros viverem – e viverem muito bem, diga-se de passagem.