De fato, viver, simplesmente, é o maior sentido que poderíamos encontrar em viver. Porém, nenhuma experiência ou ação dá-se sem uma motivação, pulsão, impulso, desejo, ou outro combustível qualquer. Alguns poderiam, até mesmo, chamar de paixão. Enfim, o homem desapaixonado, sem desejo, nada mais é do que um corpo, simplesmente carne em movimento. O que anima, dá vida, vitalidade e sentido à existência é a sensação de plenitude e de realidade se manifestando desde as organelas celulares mais primitivas até os poros do rosto. E uma das formas de se sentir presente e vivo é através da potencialidade de autorrealização. Essa capacidade humana de se auto motivar talvez seja uma das capacidades psíquicas mais incríveis da humanidade, pois dela dependem muitos outros atributos igualmente admiráveis. Ter a capacidade de se autorrealizar é poder sentir-se completo, satisfeito e feliz através das próprias ações e atitudes. Isso, claro, não exclui o papel fundamental das relações. Relação não só é o que funda o homem, como também é o que lhe dá o ambiente propício à autorealização. Porém, há de se ressaltar que ninguém é triste ou feliz por causa do outro, mas sim em função de. A grande diferença reside no fato de que muitos creem que o outro é quem deve ser o mote, a causa e a consequência do nosso desejo, do nosso prazer, da nossa felicidade e da nossa autorrealização. Entretanto, o outro, sim, é fundamental, mas não o fundamento. O fundamento está em nossa capacidade analítica de não perceber de forma simplória o universo, acreditando que o foco da realização são cada um dos dois indivíduos, separadamente. Não, o que deve ser foco da realidade relacional é o que une essas duas partes em uma só, em um mesmo universo. Sendo assim, o centro de atenção não deve ser dado apenas às peças isoladas, mas sim, também a tudo que compõe, reveste e dá sentido a elas, inclusive elas próprias e os efeitos que cada uma causa na outra e em si própria . É impossível separar causa e efeito, assim como é impossível analisar o outro sem analisar-se e deixar-se analisar. O outro só é outro porque existe um não-outro.
A atitude egoica de centrar-se somente em si, nos próprios desejos e na própria vontade limitam as capacidades transcendentes de ser mais do que se é. Quando se deixa fluir em meio a algo superior a si próprio, como é uma relação, e não se deixa mais guiar por sentimentos pequenos e puramente individuais, a autorrealização emerge como consequência imediata. Isso ocorre porque, enquanto optamos por preocuparmo-nos com aquilo que podemos fazer para o outro ser melhor e mais adequado para nós e para as nossas expectativas, deixamos de descobrir e inventar meios de sermos melhores para nós próprios. Disso decorre uma tripla frustração: frustramo-nos, em primeira instância, pela nossa incompetência em moldarmos, transformarmos e adulterarmos o outro segundo nossas próprias convicções. Essa derrota é um ataque voraz contra nosso narcisismo primordial, pois não aceitamos reconhecer que pessoas não mudam pessoas, mas que pessoas são mudadas por pessoas. Essa simples inversão de termos demonstra que no processo de viver a mudança e a transformação são inerentes à existência, porém não podem ser impostas através de vozes ativas e autoritárias, mas ocorrem através de uma relativa passividade que, com delicadeza, sutilmente coloca os sujeitos em comunhão; em um segundo nível, a frustração advém da nossa infelicidade e do vazio existencial que brotam de algum lugar dentro do peito. Mesmo estando acompanhados, sentimo-nos sozinhos, jogados na indescritível tragédia do existir. Essa frustração provém de toda a expectativa de gratificação que depositamos nos ombros do outro. Com essa ação abdicamos de nossa responsabilidade de guiarmos nossa vida, nosso destino, nossas desgraças e nossas conquistas. Ou seja, da mesma forma que acreditamos ser o outro o capaz e o responsável por nos fazer feliz, também lhe atribuímos o poder de fazer-nos tristes e vazios; no terceiro estágio, contemplamos a última frustração, aquela que surge em um momento no qual nos encontramos longe da possibilidade de refazer um destino, enfim, já consumado. Quando percebemos que nossas duas frustrações anteriores foram causadas quase que única e exclusivamente por nós mesmos, sentimo-nos culpados, arrependidos por não termos desistido e renovado nossas formas de agir, pensar e desejar nos primeiros passos desse caminho sombrio que ingenuamente escolhemos. Mesmo que o resultado do presente não pudesse ter sido totalmente diferente em função de ajustes no passado, com certeza sabemos que teríamos sido, ao menos, autorrealizados durante o percurso que nos trouxe até onde estamos. Portanto, haveríamos, senão mudado os rumos da história, pelo menos haveríamos mudado por onde a história rumou até aqui.
Viver é tão simples que precisamos criar jogos e complicações para que pareça, de fato, real. Temos medo de que aquilo que flui e não causa desconforto possa passar sem ser sentido, sem ser notado, sem ser vivido, como se fosse um sonho. Então, por medo de estarmos dormindo, encarregamo-nos constantemente de beliscarmo-nos pela pura necessidade de cessarmos a angústia de existir, em busca da leviana certeza de estarmos certos. Para seguirmos nesse caminho “certo”, inventamos problemas complexos almejando o êxtase volátil de poder resolvê-los, muito embora viver com intensidade é estar plena e constantemente realizado em saber realizar-se constantemente através de tudo aquilo que nos faz cada vez mais parecidos com o que somos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário