Existem momentos na vida em que viver já não é mais o objetivo objetivado, mas sim esquecer-se de que se está vivo e do que se viveu e se morreu até aqui. Entretanto, enquanto o coração ainda continuar a pulsar e o sangue a correr nas veias, a covarde pulsão de morte não adentrará a consciência. Então, nos deparamos com um rosto estranho no espelho de um banheiro qualquer: um rosto embriagado, entorpecido e decaído. Já não é mais belo, jovial, inocente, apenas descrente do futuro e do presente. Escondendo-nos em lapsos da consciência, apesar de ainda continuarmos substancial e fisiologicamente vivos, não estamos conscientes para perceber. Aliás, vivendo guiados pela subconsciência, a percepção de tudo e de todos é amena e intensa como um devaneio desvairado, colorido e altamente odorífero. A contradição nasce quando nos percebemos mais vivos e presentes do que, de fato, buscávamos estar. Mas, infelizmente, estamos em um presente que não nos presenteia com a dádiva da completude e da harmonia contínua. Estamos inquietos por insistirmos em sermos o que não somos e o que tememos nunca conseguir ser. A busca da vida intensa é a morte transvestida com uma capa de um anseio de liberdade infantil. Nesse tortuoso e infrutífero caminho de busca de nós mesmos, afastamo-nos cada vez mais daquilo que procuramos sem nem ao menos saber o que é. Estar livre é uma prisão arbitrária, inescrupulosa e com muitos requintes de crueldade. A identidade que nos prende e aprisiona em um nome, em uma vida, em sonhos, medos, forças, fraquezas, defeitos e qualidades não é um muro a ser derrubado ou transposto; mas um porto seguro para sempre ancorar e usar como ponto de partida para novas empreitadas pelos revoltos oceanos pacíficos da vida. Quando se nega ou se manipula quem somos, chegamos ao cúmulo da solidão, ao ápice da tristeza, ao abismo que separa o peso e a leveza. Quando nos deparamos com a voz e com os desejos de um desconhecido dentro de nossas mentes, nos percebemos esquecidos dentro de nós mesmos, perdidos em um universo hostil, comprimidos entre a verdade e a mentira, sufocados por todos os mundos desbravados por todos os nós que passaram a habitar essa bolha de ilusões que se tornou o nosso peito amargo. Aquele amigo que nos virou as costas quando acreditávamos mais precisar, ou que com rudes palavras nos fez chorar, talvez não tenha sido um inimigo a combater, pois estender a mão não é apenas um ato de ajuda, mas de aceitação, cumplicidade e aprovação. Ter uma mão estendida àquela entidade que se apoderou de nossa alma e mente é um apoio para galgar degraus rumo ao âmago do inferno existencial e vazio absoluto que nos depararemos quando chegarmos ao mais profundo de uma alma sem paz, sem identidade e sem um abraço que esquente o coração com o amor fraterno da compreensão de quem - por dentro da casca - ainda somos. Se aquele no espelho já não consegue mais sorrir e sentir a alma alegrar-se, é porque entre os olhos vidrados no espelho e o espírito depredado existe uma barreira esquizofrênica e intransponível que segrega violentamente quem não somos de quem não queremos ser. Esse conflito entre os dois que não somos gera quem passamos a ser: um subconsciente inane, um corpo sem sentido que como única meta tem o flutuante e sempre distante objetivo de recuperar-se, definitivamente, do cada vez mais constante torpor. Viver entre a euforia e a depressão não é a liberdade da vida, mas a morte lenta e constante do ser pujante que um dia transbordou dos olhos de quem, um pouco mais a cada dia, menos conseguimos sentir dentro de nosso imo.
Não destrua o que já não resta mais do que você nunca foi; não cubra a vida com a morte. Entre ser quem não se é, e não ser nada, é preferível não ser nada. Todos os caminhos que nos guiam rumo ao infinito sempre são caminhos passíveis de serem trilhados de maneira amena, correta e harmoniosa. Podemos iniciar uma nova jornada a cada manhã, com pequenos passos rumo a uma pequena tranqüilidade e, assim, pouco a pouco, distanciarmo-nos de uma ficção delirante, que só se torna confortante quando se está no cume da despersonalização, e, dessa forma, dissolvendo no vazio toda possibilidade de lembranças verdadeiramente aprazíveis e reconfortantes, dignas de serem rememoradas e enunciadas pelos intermináveis ciclos da vida eterna e perecível.
A salvação não está no mundo, mas no mudo olhar de quem consegue ver tudo mudar sem perder a paz de sempre estar como um todo no mesmo lugar.
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